terça-feira, junho 23, 2009

Os feminismos no Brasil: dos "anos de chumbo" à era global

Margareth Rago

Resumo:

Este texto analisa a crescente participação das mulheres em todas as esferas de atividade na sociedade brasileira, observando a atuação dos movimentos feministas/de mulheres para a conquista destes espaços, território que tende a ser esquecido ou minimizado.Um histórico dos movimentos feministas no Brasil , que promovem mudanças significativas nas relações feminino/masculino e na própria expressão da sexualidade é assim traçado. Dos anos da ditadura militar a nossos dias, as diversas expressões dos movimentos feministas brasileiros são assim apontadas.

Palavras-chave: movimentos feministas, sexualidade, sexismo, histórico.

Um rápido olhar sobre as ruas e praças das cidades brasileiras logo destaca a crescente e colorida presença das mulheres, marcando fortemente uma diferença em relação ao passado. Os espaços públicos se tornam menos constrangedores, percebe a observadora recém-chegada, concluindo que houve uma grande mudança nos hábitos e costumes da população. Progressivamente também nota que nos postos de gasolina, nos restaurantes e bares, nas lojas, bancos, empresas, nas escolas e universidades, ou nas delegacias, seu número aumentou consideravelmente, mesmo que, muitas vezes, não nos postos de comando. Ainda assim, uma mulher é a atual prefeita da maior cidade do país e as negras começam a compor o ministério do governo de esquerda.

É bem possível que se a observadora fizer entrevistas com muitas dessas mulheres, especialmente com as mais jovens, concluirá que não se consideram feministas e que nem mesmo conhecem a história do feminismo no Brasil, afinal este não é um país onde o sentido histórico seja predominante. De qualquer modo, esse desconhecimento não deve levá-la a concluir que o movimento feminista não tenha tido um forte impacto sobre as estruturas socioeconômicas, sobre as instituições políticas e principalmente sobre o modo de pensar, no país e que não esteja em plena ebulição ganhando cada vez maior número de adeptas, militantes e associadas. Aliás, tentando satisfazer à sua possível curiosidade, apresso-me a dar algumas pinceladas sobre a história do movimento feminista brasileiro das últimas décadas.

Quarenta anos depois da conquista do direito feminino de voto no Brasil, em 1932, mas também da vitória dos padrões normativos da ideologia da domesticidade, entre os anos trinta e sessenta, assistimos à emergência de um expressivo movimento feminista, questionador não só da opressão machista, mas dos códigos da sexualidade feminina e dos modelos de comportamento impostos pela sociedade de consumo. No contexto de um processo de modernização acelerado, promovido pela ditadura militar e conhecido como “milagre econômico”, em que se desestabilizavam os vínculos tradicionais estabelecidos entre indivíduos e grupos e a estrutura da familiar nuclear, as mulheres entraram maciçamente no mercado de trabalho e voltaram a proclamar o direito à cidadania, denunciando as múltiplas formas da dominação patriarcal.

Também homossexuais masculinos e femininos se organizaram, ao lado de outras “minorias” sociais, e se manifestaram em movimentos políticos reivindicando o “direito à diferença” e questionando radicalmente os padrões dominantes da masculinidade e da feminilidade. O movimento negro fortaleceu-se, invadindo os espaços públicos das universidades às praças, defendendo o “black is beautiful”, e colocando em cena as novas exigências e críticas das mulheres negras, diferenciando-se, por sua vez, das demandas dos feminismos “brancos”.

A contrapartida à violenta ditadura militar foi a explosão de uma vigorosa cultura da resistência, que se expressou na crítica política ao regime, a exemplo das composições musicais de Geraldo Vandré, Chico Buarque de Holanda, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil, assim como na proposta de modos alternativos e libertários de vida em sociedade, a exemplo do movimento hippie. Inicialmente dirigida ao regime militar, a “revolução cultural” em curso nas décadas de sessenta e setenta, no país, estendeu seus questionamentos à sociedade burguesa mais ampla, encontrando várias correntes do pensamento internacional envolvidas com a crítica à modernidade.

Assim, paradoxalmente, no mesmo momento em que se vivia aqui uma violenta repressão política e cultural, que afetava radicalmente a vida pública, cerceando a palavra e a ação, desfazendo os antigos espaços de sociabilidade e interação social, assistia-se à emergência de novas formas de produção cultural, tanto nos setores ligados às lutas da resistência, quanto entre os mais indiferentes, ou mesmo comprometidos com a ditadura militar. Multiplicavam-se os espaços culturais e desportivos, tanto dos que pregavam o “culto californiano do corpo”, quanto dos que criticavam as formas sociais aburguesadas e que, inspirados pelos orientalismos, recorriam à yoga, aos relaxamentos terapêuticos, aos tratamentos psicológicos e psiquiátricos, à alimentação macrobiótica e naturalista.

A classe média urbana, em especial, passou a solicitar e desfrutar das inúmeras formas de tratamento psicológico, ao viver de maneira brutal a ruptura de antigos padrões de relações familiares, a quebra dos antigos modos de sociabilidade e a destruição da esfera pública e das antigas formas de convívio e solidariedade.(Figueiredo, 1994)

Nesse contexto de crise e de construção de novos modelos de subjetividade, desde os anos setenta, emergiu o “feminismo organizado”, como movimentos de mulheres das camadas médias, na maioria intelectualizadas, que buscavam novas formas de expressão da individualidade.(Goldberg, 1986) Em luta contra a ditadura militar, defrontavam-se com o poder masculino dentro das organizações de esquerda, que impediam sua participação em condições de igualdade com os homens nos movimentos então construídos.

Assim, as primeiras organizadoras dos grupos e jornais feministas, em meados daquela década, iniciaram um movimento de recusa radical dos padrões sexuais e do modelo de feminilidade que suas antecessoras haviam ajudado a fundar, nos inícios do século 20. Mais do que nunca, as feministas colocaram em questão o conceito de mulher que a afirmava enquanto sombra do homem e que lhe dava o direito à existência apenas como auxiliar do crescimento masculino, no público ou no privado.

Fora do feminismo, mas também influenciadas por ele, surgiam outras revistas destinadas ao público feminino mais amplo, como as revistas NOVA e MAIS, da Editora Abril Cultural, inspiradas nos padrões jornalísticos norte-americanos, que propunham novas linguagens em relação ao corpo e à sexualidade das mulheres e uma reflexão que, embora construída nos marcos de um pensamento contestador, avançaram a discussão de assuntos considerados tabus, como o sexo e o orgasmo da mulher.(Moraes e Sarti,1980)

- o feminismo rebelde

Paralelamente aos movimentos sociais que se levantavam contra a ditadura militar, - como o movimento das mulheres que se organizava na periferia das principais cidades - mas que não incluía em sua agenda as bandeiras do feminismo -, as feministas propuseram-se, desde meados dos anos setenta, a denunciar a dominação sexista existente inclusive no interior dos grupos políticos, de sindicatos e partidos de esquerda.(Alvarez, 1988) Marcadas por uma experiência política de oposição, já que muitas eram ex-ativistas políticas e vinham do exílio forçado no exterior, ou então, das prisões, entenderam que o movimento pelos direitos das mulheres, no Brasil, deveria ser diferenciado e não subordinado às lutas que despontavam em múltiplos espaços sociais e políticos pela redemocratização no país.

Acima de tudo, as primeiras feministas brasileiras questionavam radicalmente as relações de poder entre os gêneros, que se estabeleciam no interior dos grupos políticos de esquerda e lutavam para impedir que a dominação machista fosse diluída ou subsumida pelo discurso tradicional da Revolução. No entanto, muitas traziam uma referência ideológica marxista, a partir da qual pensavam as relações entre os sexos.

Assim, logo que estabeleceram as estratégias e táticas de seu movimento, definiram que o alvo maior de sua preocupação deveria ser as trabalhadoras, consideradas não como o setor mais oprimido socialmente, mas como as principais portadoras da Revolução Social. Os dois principais jornais feministas fundados no período – o BRASIL MULHER, do grupo homônimo de Londrina, que circulou entre 1975-1980 e o NÓS, MULHERES, da Associação de Mulheres de São Paulo, publicado entre 1976-1978 – visavam conscientizar as trabalhadoras pobres, iniciando-as numa linguagem marxista, inicialmente destinada a pensar a luta entre as classes sociais, e não precisamente a “guerra entre os sexos”.

Esta postura obedecia a algumas estratégias políticas: de um lado, obter o reconhecimento social de um movimento que colocava as mulheres como alvo principal; de outro, conseguir a aliança dos demais setores da esquerda, envolvidos na luta pela redemocratização, onde os homens davam as cartas e enunciavam um discurso político bastante característico. Além do mais, nesse momento, o marxismo ainda era considerado o principal instrumento teórico de análise no campo da política revolucionária.

O feminismo, nesse contexto, procurou pautar-se pela linguagem predominante na esquerda do país, dominando não apenas os conceitos marxistas, mas procurando provar como, em cada uma das questões levantadas pelos líderes e partidos políticos, era possível também perceber a dimensão feminina. Em suma, falando a linguagem marxista-masculina, as feministas esforçaram-se para dar legitimidade às suas reivindicações, para valorizar suas lutas e apresentarem-se como um grupo político importante e digno de confiança. Por isso, o editorial de NÓS MULHERES, publicado a 7 de março de 1978, propunha:

“ Que as coisas fiquem claras: mantemos a firme convicção de que existe um espaço para a imprensa feminista, que denuncia a opressão da mulher brasileira e luta por uma sociedade livre e democrática. Acreditamos que a liderança da luta feminista cabe às mulheres das classes trabalhadoras que não só são oprimidas enquanto sexo, mas também exploradas enquanto classe.”

A idéia de que o conceito de classe deveria ser priorizado em relação ao de sexo revelava, portanto, que a apropriação da linguagem masculina, marxista ou liberal, era fundamental para se conseguir a aceitação na esfera pública masculina, que progressivamente se reconstituía. Era, portanto, uma estratégia de reconhecimento político e social fundamental num momento em que as barreiras para a entrada das mulheres no mundo da política eram pesadas demais, seja as impostas pela ditadura militar, seja as criadas pela própria dominação masculina, de esquerda ou de direita.

As feministas se colocavam, assim, segundo a perspectiva marxista-leninista, como vanguarda revolucionária do movimento das mulheres, necessária para orientar as trabalhadoras em sua “missão histórica”, parafraseando o que a esquerda repetia em relação às suas tarefas para com o proletariado. Articulavam-se para fora, deste modo, com os outros movimentos de luta pela redemocratização no país e, deste modo, eram legitimadas.

Na segunda metade da década de setenta e inícios de oitenta, nasceram inúmeros grupos feministas, mais ou menos próximos do campo marxista e dos grupos políticos de esquerda, ao mesmo tempo que abertos para os novos horizontes teóricos e políticos que se abriam no país, sobretudo com os “novos” movimentos sociais. Assim como outros grupos denominados de “minorias”, as feministas buscavam criar uma linguagem própria, capaz de orientar seus rumos na construção da identidade das mulheres como novos atores políticos.

Desta experiência, surgiram inúmeras associações feministas no país, como o Centro Brasileiro da Mulher, no Rio de Janeiro, a Associação de Mulheres, de São Paulo, futuramente denominada “Sexualidade e Política”, o Coletivo Feminista do Rio de Janeiro, o Coletivo Feminista de Campinas, SOS Violência de São Paulo, o SOS Campinas, o SOS Corpo, no Recife, o Maria Mulher, em João Pessoa, o Brasília Mulher, o Brasil Mulher, o Grupo “Sexo Finalmente Explícito”, o Centro de Informação da Mulher – CIM, de São Paulo, entre outros.

Todos eles mesclavam ex-militantes partidárias, marxistas e ex-marxistas, com feministas das novas gerações que defendiam prioritariamente as “políticas do corpo” e as questões da sexualidade. A despeito das tendências políticas diferenciadas, estes grupos buscavam total autonomia em relação aos partidos políticos de esquerda, como o PT - Partido dos Trabalhadores, que acabava de ser fundado, embora muitas ativistas fossem também militantes partidárias.

- a “explosão desconstrutivista” nos anos 80

Somente depois desse primeiro momento de afirmação do feminismo enquanto movimento social e político que lutava pelos direitos das mulheres, mas que também se colocava na luta pela redemocratização do país, é que as feministas passaram a propor uma nova concepção da política, ampliando os próprios temas que constituíam o campo das enunciações feministas na esfera pública.

Assim, questões antes secundarizadas como essencialmente femininas e relativas à esfera privada, isto é, não pertencentes ao campo masculino da política – a exemplo das relativas ao corpo, ao desejo, à sexualidade e à saúde – foram politizadas e levadas à esfera pública, a partir da utilização de uma linguagem diferenciada, que além do mais, permitia enunciá-las. Nesse momento de crítica acentuada à racionalidade ocidental masculina, já não mais definida apenas como burguesa, partiu-se para a afirmação do universo cultural feminino, em todas as dimensões possíveis. Isto implicava, no campo conceitual, a emergência de uma linguagem especificamente feminina e daquilo que se considera como uma “epistemologia feminista”, suficientemente inovadora em suas problematizações e conceitualizações, para apreender as diferenças.(Rago, 1998)

Por vários lados, as feministas passavam a feminizar-se valorizando a linguagem feminina, os atributos e os temas femininos, o que significava mais do que um simples retorno aos seus valores próprios, um alargamento do campo conceitual, através do qual teciam suas críticas à sociedade patriarcal capitalista, revelando suas armadilhas e limitações. Mais do que nunca, passaram a pensar em si mesmas sob uma ótica própria, dando visibilidade ao que antes fora escondido e recusado, o que inevitavelmente levou a uma radicalização da potencialidade transformadora da cultura feminista em contato com o mundo masculino. Tratava-se, então, não mais de recusar o universo feminino, mas de incorporá-lo renovadamente na esfera pública, o que se traduziu ainda por forçar um alargamento e uma democratização desse mesmo espaço.

As questões do mundo privado, da subjetividade, da família, da sexualidade, das linguagens corporais ganharam visibilidade e dizibilidade, podemos dizer, tomando de empréstimo alguns termos de Deleuze, tanto na prática cotidiana dos grupos feministas, quanto nos debates acadêmicos e nas reuniões dos militantes. O distanciamento do discurso marxista-masculino, por sua vez, facilitou a incorporação de temas tabus como os referentes às emoções, ou à moda e, por conseguinte , a procura de novos conceitos capazes de enunciá-los e interpretá-los. Estes foram buscados, sobretudo, no campo conceitual que vinha sendo proposto pelas correntes do pensamento pós-moderno, a exemplo do conceito de “desconstrução” de Derrida, ou das noções de “poder disciplinar” e de “subjetivação”, trabalhadas por Foucault.

A ampla crítica cultural feminista não deixou de lado as próprias representações do feminismo, veiculadas na imprensa alternativa de esquerda, especialmente a partir da publicação do jornal MULHERIO, entre 1981 e 1988. A antropóloga Eliane Robert Moraes, por exemplo, num sugestivo e inteligente artigo perguntava-se “Feminista é Mulher?”, endereçando suas críticas tanto aos “rapazes” do jornal O Pasquim, para as quais as feministas só poderiam ser mulheres feias e mal-amadas, quanto às próprias feministas que reforçavam uma imagem negativa de si mesmas. Enfim, perguntava-se por que lutar pela autonomia feminina implicava numa dessexualização e num certo embrutecimento da mulher. O próprio jornal, em edição de março-abril de 1981, explicava seu título, afirmando:

“Por que Mulherio? Mulherio. Quase sempre a palavra é empregada em sentido pejorativo, associado a histerismo, gritaria, chatice, fofocagem, ou então, “gostosura”. Mas qual é a palavra relacionada à mulher que não tem essa conotação? (...)

Mulherio, por sua vez, nada mais é do que “as mulheres”. E’ o que somos, é o que este jornal será. “Sim, nós vamos nos assumir como Mulherio e, em conjunto, pretendemos recuperar a dignidade, a beleza e a força que significam as mulheres reunidas para expor e debater seus problemas. De uma maneira séria e conseqüente, mas não mal-humorada, sisuda ou dogmática.”

Enfim, nesse novo feminismo, a estética, os cuidados de si, a saúde e a beleza do corpo passavam a fazer parte do leque temático sem, contudo, significar uma adesão acrítica aos ideais de beleza veiculados pela mídia. Muito ao contrário, passavam a compor as discussões relativas à saúde, vista agora numa perspectiva ampliada. Assim, vários artigos discutiam que tipo de beleza as feministas desejavam (“A beleza produzida”, “Espelho, espelho meu”, de Sivia Beck), enquanto a psicanalista Maria Rita Kehl questionava a aceitação/negação machista do corpo feminino, aceito apenas enquanto expressão de um determinado padrão estético:

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“Se os homens afirmam que vêm na mulher antes de mais nada belos contornos, considero isso como um empobrecimento de sua capacidade de olhar e ver. Estou convencida de que nosso olhar sabe encontrar no homem sinais do que ele é, além dos contornos de sua musculatura.” (KHEL, Maria Rita. Mulherio, ano 2, no.5, jan-fev.1982, p.14-15).

A psicanalista feminista reforçava sua crítica observando como para ser ao mesmo tempo “moderna e atraente dentro dos padrões da boneca de luxo de antigamente”, as mulheres precisavam consumir muito mais, no interior de um sistema de referências ditadas pelo mundo masculino, em que o corpo feminino deveria ser ágil, limpo, magro, cheiroso e rígido. Propunha radicalmente “a subversão de nossos conceitos estéticos”:

“A maior beleza é a do corpo livre, desinibido em seu jeito próprio de ser, gracioso porque todo ser vivo é gracioso quando não vive oprimido e com medo. E’ a livre expressão de nossos humores, desejos e odores; é o fim da culpa e do medo que sentimos pela nossa sensualidade natural; é a conquista do direito e da coragem a uma vida afetiva mais satisfatória; é a liberdade, a ternura e a autoconfiança que nos tornarão belas. É essa a beleza fundamental.” (idem)

O repensar das práticas feministas levou, ainda, à decisão de abrir os guetos feministas e encontrar os inúmeros canais disponíveis e outros movimentos que ocorriam na sociedade. As feministas ampliaram seu raio de atuação, entrando nos sindicatos, partidos, espaços de diferentes entidades da sociedade civil e, sobretudo, no “movimento de mulheres”, que se articulara, desde os anos setenta, na periferia de algumas cidades, como em São Paulo, apoiado pela Igreja de esquerda e pelos grupos políticos envolvidos na luta pela redemocratização.

Esse movimento, embora mobilizasse um número excepcionalmente grande de mulheres, não levantava questões feministas como bandeira de luta. Lutava por creches, por transportes urbanos, por melhores condições de vida sem, contudo, serem incluídas questões femininas importantes, como o aborto e a violência sexual contra as mulheres, temas bastante pertinentes nos meios pobres e ricos.

Assim, o contato que se estabeleceu entre os dois movimentos liderados pelas mulheres – o movimento feminista e o movimento de mulheres – foi certamente muito lucrativo para todas. Para as feministas, porque passavam a atingir uma rede muito mais ampla de mulheres; para as mulheres pobres da periferia, porque lhes traziam questões que dificilmente seriam enunciadas espontaneamente, como as referentes à moral sexual, ao corpo e à saúde. Fundamental nessa associação, o feminismo desenvolveu e ampliou suas bandeiras de luta, dando destaque às questões da violência contra as mulheres e dos direitos reprodutivos.

Vale lembrar que, nesse período, e como parte de seu próprio processo de abertura aos diferentes canais de participação social e política, o feminismo também se caracterizou por iniciar um diálogo com o Estado, sobretudo a partir de 1982, com a criação do Conselho Estadual da Condição Feminina, em São Paulo. Em 1985, surge a primeira Delegacia Especializada da Mulher.

Para muitas, isto significou um enorme perigo de institucionalização dos movimentos feministas, ameaçados de ser absorvidos pelo Estado “pós-autoritário”, mas ainda machista, enquanto outras julgaram os benefícios que daí poderiam resultar. Assim, se de um lado foram implementados determinados programas de ação como o PAISM – Plano de Assistência Integral à Saúde da Mulher – em 1984, a partir das propostas feministas de cuidados com o corpo e a saúde, de outro, várias feministas apontaram para as dificuldades de implementação efetiva do programa, que não contava com o apoio necessário do Estado.

- questões de gênero

Sem dúvida, são enormes as conquistas realizadas pelos feminismos em todos os campos da vida social, ao longo dessas décadas, especialmente no que se refere à aceitação das mulheres no mercado de trabalho e ao seu reconhecimento profissional. Além disso, as mulheres têm reivindicado cada vez mais seus direitos de cidadania e aberto novas formas e espaços de luta. Cresceram e têm crescido os grupos feministas, como o Coletivo das Mulheres Negras da Baixada Santista, o Geledés – Instituto da Mulher Negra e o Criola, que defendem a causa das mulheres negras. Surgiram inúmeras ONGS feministas, das quais se destacam a REDEH - Rede de Desenvolvimento Humano, o CFEMEA - Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o SOF- Sempre Viva Organização Feminista e a União das Mulheres, em São Paulo, entre outras. Inúmeros núcleos de pesquisas sobre as mulheres e as relações de gênero têm impulsionado pesquisas não só sobre as questões femininas, mas direcionadas também para os estudos da masculinidade, nas universidades brasileiras. Deste trabalho, resultam algumas importantes publicações, como a Revista de Estudos Feministas, atualmente vinculada à Universidade Federal de Santa Catarina e os Cadernos Pagu, na Universidade Estadual de Campinas. Enfim, as mulheres se afirmam no mundo público, revelando uma criatividade e uma potencialidade indiscutíveis, feminizando indubitavelmente a cultura ocidental.

Por outro lado, não há como negar o fato de que todas as conquistas arduamente ganhas ao longo dessas últimas décadas pelos feminismos não estão consolidadas. Ao contrário, são continuamente ameaçadas por pressões machistas as mais conservadoras. Uma das principais queixas das “novas mulheres”, em geral, é a dupla jornada do trabalho e o acirramento da competição no mundo masculino. As duas questões não podem ser dissociadas, se considerarmos que a exigência da qualidade do trabalho feminino ainda é muito maior do que a que se dá em relação aos homens. As mulheres ainda pagam um alto preço por participarem da vida pública, como continuam a denunciar as feministas. Na verdade, a libertação feminina acarretou um aumento muito grande do trabalho feminino, especialmente para as casadas ou com filhos. A guerra entre os sexos não terminou e, aliás, se acentua nos novos fronts: o profissional e o afetivo.

Contudo, e a despeito do pessimismo suscitado pelo conservadorismo de nossos tempos, os feminismos, seja enquanto modo de pensamento, seja enquanto conjunto de práticas políticas, sociais e sexuais, tem contribuído enormemente para a crítica cultural contemporânea. Para além da desconstrução de configurações ideológicas, conceituais, políticas, sociais e sexuais que organizam nosso mundo, os feminismos deram visibilidade às formas perversas da exclusão que operam no mundo público. Ao mesmo tempo, propuseram formas alternativas de organização social e sexual fundamentais para a construção de relações mais igualitárias não apenas entre os gêneros, já que se trata fundamentalmente da construção de um novo conceito de cidadania, num campo em constante mutação. Finalmente, há que se destacar a enorme contribuição feminista à ciência, introduzindo as discussões não apenas relativas às mulheres, mas ampliadas às questões do gênero, e mais do que isso, transformando radicalmente o modo de pensamento, com suas problematizações diferenciadas.

A observadora já pode se retirar, percebendo que a “mulher pública” no Brasil do século 21 deixou de referir-se à prostituta, associação, aliás, da qual atualmente quase ninguém mais se lembra...

Dados biográficos:

Margareth Rago é professora livre-docente do Departamento de História do IFCH da Universidade de Campinas, Unicamp . É coordenadora do Grupo de Estudos Foucaultianos e da Linha de Pesquisa História, Cultura e Gênero do Programa de Pós-Graduação em História deste Depto. Foi professora-visitante no Departamento de História do Connecticut College, nos Estados Unidos, pela Comissão Fulbright.Publicou vários livros: O que é Taylorismo? ,Brasiliense,1984; Do Cabaré ao Lar. A utopia da cidade disciplinar, Paz e Terra,1985; Os Prazeres da Noite.Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo, Paz e Terra,1989; Narrar o Passado, Repensar a História, com Renato Aloisio Gimenes ,Unicamp,2000 e Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo, ED.da Unesp, 2001

Texto retirado da revista eletrônica Labrys, estudos feministas